Abaixo segue a proposta de sistematização do Encontro de Grupos Autônomos do DF de 2012 (EGA). Ponto inicial para a reunião pós-EGA marcada para o dia 30/06/2012 (Sábado). Ed. Baracat, sala 111 CONIC, às 15 horas.
Esperamos que a partir deste texto possamos trazer novos elementos e dar prosseguimento às inúmeras possibilidades políticas que possamos ter conjuntamente.
(Para baixar)
Sistematizacao Autonomia EGA – (Doc)
Sistematização Autonomia EGA – (PDF)
Encontro de Grupos Autonomos – DF: 01, 02 e 03 de Junho 2012
Sistematização da discussão de 02 de junho: O que é Autonomia?
Princípios
O Movimento Autônomo surgiu no DF tendo por base uma série de princípios. Em muitas ocasiões eles não foram formalizados, o que gerou diferentes problemas: muitas tornavam-se personalizados, e quem tivesse maior capacidade ou paciência de compreendê-los/decorá-los constituía sobre si algum poder; outras vezes, eles se tornavam muito fluidos, quase gelatinosos: e, por melhor que seja deixar criativa e aberta a definição dos caminhos da autonomia, tantas coisas cabiam dentro dela que ficava muito difícil se vincular, ou mesmo saber as divergências existentes dentro do movimento. Por conta desses dois problemas, tornava-se muito difícil pras pessoas que queriam vincular seu grupo ao movimento saber por onde fazê-lo.
Assim o movimento autônomo – que nos últimos dez anos cresceu e tornou-se referência no DF – acabou principalmente divulgando um tipo de organização e alguns princípios, sem desenvolver-se tanto de forma orgânica, fortalecendo os vínculos que sempre estimulou. Por isso discutimos e juntamos um conjunto inicial de princípios que sirvam como referência e possibilidade de crítica para podermos avançar. São nosso chão e não nosso céu. E podem ser o chão de muitas pessoas mais, quantas quiserem a este movimento se somar.
Nossos princípios são:
1. Horizontalidade: Os poderes devem estar ao alcance de toda coletividade do movimento, e influenciar a coletividade da sociedade. A horizontalidade não pode ser considerada como espontânea ou natural, mas sim construída por mecanismos reais como o compartilhamento de conhecimento e revezamento de tarefas.
2. Anticapitalismo: O Movimento Autônomo tem um horizonte de destruição deste sistema social. Seja entendendo-o desde sua matriz econômica de expropriação do trabalho, seja no entendimento do capitalismo como um sistema que aglutina o conjunto das lutas dos movimentos ambientais, feministas, étnicos, operários. Uma autonomia que não aponte para este caminho é liberal, o contrário do que estamos construindo.
3. Independência do mercado e do Estado: estamos dentro desta sociedade, porém, contra ela. Não há como não temos relações com os elementos gerais desta sociedade em nosso desenvolvimento. Todavia devemos reservar a capacidade de nossas lutas de terem suas escolhas e formulações construídas de forma independente das movimentações de mercado e das dinâmicas do estado. Independência financeira é determinante para a independência política. Igualmente, autonomia na hora de decidir é fundamental para criarmos nossa política plenamente assumindo os riscos e benefícios dela.
4. Forma é Conteúdo: as lutas e movimentações devem ter o horizonte emancipatório em seus objetivos a alcançar e em suas formas de conquistar esses objetivos. Trata-se de um principio que levamos não apenas pra nossa militância mas também para as nossas vidas.
4. Solidariedade para a transformação social: sabendo quem são nossos aliados/as, adversári@s e inimigos, devemos estabelecer relações solidárias entre nós como forma de nos ajudarmos em nosso florescimeno. Com solidariedade entre nós, podemos ser construtivos e agir em coletividade.
5. Apartidarismo: Discordamos do modelo de organização partidária em suas diferentes formas (a social-democrata, a bolchevique, a tradicional). Seja como forma de disputar o poder legal, como estratégia para tomá-lo ou como forma de existir politicamente. Vemos nestas estratégias de luta elementos de burocratização inerentes. (pensar a discussão sobre apartidarismo x anti-partidarismo)
6. Autocrítica: a capacidade de se analisar e se criticar deve ser aberta a toda coletividade, sendo uma prática constante como uma forma efetiva da organização não se burocratizar. Mas com cuidado constante para não se autodestruir.
7. Nossa luta não é dogmática, ortodoxa. A capacidade de relermos nossas formas de atuação com base nas autocríticas é um elemento de amadurecimento do movimento e não de desvio dos princípios e missões aos quais nos destinamos.
8. Trabalho de Base: agimos com a parte de baixo da sociedade, junto às bases deste sistema social. Queremos construir outro poder em que o poder seja coletivizado à base da sociedade que hoje quase não tem acesso a ele. Por isso nossa forma de trabalho deve estar vinculada às bases sociais e aos grupos oprimidos, buscando emancipação coletiva.
Reflexões:
Sobre a horizontalidade
Construir relações de poder não opressoras e de fato democráticas dentro dos nossos coletivos é um aspecto fundamental dos grupos autônomos, já que não queremos reproduzir nos nossos espaços as estruturas que queremos destruir fora deles.
Entendemos, no entanto, que a horizontalidade não acontece nem espontaneamente nem de forma linear. Para construí-la, precisamos criar mecanismos internos de controle do poder, já que a ausência deste não existe, e só uma atuação consciente dos grupos para controlá-lo e distribuí-lo manterá a horizontalidade.
A criação desses mecanismos foi apontada como um desafio dos grupos autônomos: eles variarão de grupo para grupo, e não existe uma receita pronta ou uma fórmula única para se criar alternância e fluidez de poder. Entre as dificuldades encontradas estão: o fato de algumas tarefas terem mais prestigio do que outras, e muitas vezes elas serem executadas pelas mesmas pessoas e a questão da hierarquia da experiência, uma das mais difíceis de romper, já que militantes mais antigos/as tem um acúmulo maior dentro do movimento e o processo de compartilhamento desses conhecimentos oscila entre a falta de paciência com questões trazidas pelos/as mais novos/as e uma perda da profundidade de discussões já feitas.
Apesar da horizontalidade não depender apenas de formalidades para ser construída, algumas práticas básicas foram sugeridas: a marcação do tempo de fala e o revezamento na execução das atividades enquanto recurso pedagógico, e também a delegação de funções, vista como fundamental para a eficácia dos movimentos e diferenciada da hierarquia já que o controle do grupo sob o/a responsável se mantém. Exemplos como o sistema de governo Zapatista também foram citados, como inspiração para este processo de delegação de poderes.
Sobre a autonomia x auto-suficiência
A autonomia que construímos é pautada pela solidariedade e não por uma suposta auto-suficiência. Ao contrário da autonomia liberal, que prega o sucesso do homem que venceu sozinho, o nosso projeto político inclui depender do máximo de pessoas e coletivos possíveis, tornando nossa rede cada vez mais forte e menos vulnerável.
Essa “dependência”, na verdade uma rede de solidariedade entre os diversos grupos autônomos, é muito diferente das relações com o Estado. O Estado é essa estrutura que sintetiza as opressões que estamos combatendo e, como tal, possui uma serie de praticas que, desde as menores instancias, reforçam e constroem um projeto político oposto ao nosso. Assim, qualquer tipo de interação com o Estado deve considerar que tentar subverter suas estruturas é também entrar em uma lógica que queremos destruir e deve pautada pela total independência, sempre considerando o principio já citado de que independência financeira é independência política.
Isso não implica em dizer que todos os grupos devem recusar financiamentos de editais, por exemplo. Esta é o tipo de decisão que caberá a cada grupo tomar. Mas essa interação deve ser feita com todo o cuidado e consciência dos riscos envolvidos, de forma que não sejamos engolidas pelas engrenagens estatais, mantendo, portanto, nossa autonomia.
Sobre a importância da memória
Talvez uma das grandes dificuldades dos movimentos autônomos do DF é resgatar e preservar a memória de tudo o que construímos até agora. A nossa memória, é parte fundamental do que somos e nos diz muito sobre como e porque chegamos aonde chegamos. deixá-la de lado é entregar, mais uma vez, nas mãos de nossos inimigos a possibilidade de construir a historia como eles bem entendem, uma historia dos de acima, uma historia que renega o papel dos movimentos sociais na conquista de direitos e que invisibiliza os diversos processos anti-sistêmicos correntes mundo a fora.
Essa nossa falta de memória nos traz, também, uma serie de implicações internas: muitas vezes dificuldades encontradas por um coletivo são dificuldades que outros movimentos já enfrentaram e o compartilhamento dessas experiências pode impedir com que estejamos constantemente reinventando a roda. Essa sensação é muito nociva, tanto para os/as militantes mais antigos/as, que sentem que muitas vezes não se consegue sair do lugar, como para os próprios movimentos que constantemente perdem toda a profundidade de discussões já feita de forma muitas vezes bastante elaborada. Preservar nossa memória, portanto, implica também em construir relações horizontais, de forma que o conhecimento já produzido pelo movimento autônomo esteja disponível e possa ser apropriado por todos e todas.
Sobre as praticas de nossos grupos
Conversando sobre as praticas internas de nossos grupos, pontuamos algumas questões consideradas fundamentais. Em primeiro lugar, o uso do consenso como método preferencial de decisão, ainda que não deva existir a obrigatoriedade de que seja o único. O consenso requer confiança que estamos todos/as trabalhando em prol de um mesmo projeto político. Por outro lado, muitas vezes deixa-se de evidenciar algumas divergências no grupo ou de aprofundar algumas discussões em nome de um “purismo” do consenso. Por isso utilizar o voto pode ser interessante em determinados momentos e não deve virar um tabu.
Ainda no âmbito da confiança, comentamos que existe uma pratica generalizada de indisciplina dentro dos movimentos autônomos que é extremamente nociva e desestimulante. O comprometer-se com tarefas e não cumpri-las cotidianamente abala a confiança dos e das integrantes que estão de fato se empenhando em concretizara s decisões do movimento, alem de torná-lo profundamente ineficaz. Alem disso, uma cultura de fazer as coisas dos movimentos com desleixo também esta muito difundida e precisa ser modificada de forma que possamos alcançar com o pouco que temos o melhor resultado possível. Na falta de um termo melhor, chamamos essa nova pratica que pretendemos construir de “cultura de excelência”.
Outro ponto citado como uma pratica dos movimentos autônomos foi a grande presença do elemento lúdico em nossas ações. Ao contrario de outros grupos, no movimento autônomo o lúdico não se separa do político: eles são a mesma coisa. Assim, discordamos de grupos que utilizam de uma certa estética atraente, mas vazia de conteúdo políticos, como os que dizem por ai que “não são de esquerda nem de direita” na tentativa de serem palatáveis para mais gente. A nossa estética é política e nossa política é estética.
Refletimos também acerca da longevidade dos grupos autônomos: nesses anos, uma serie de coletivos surgiram e se acabaram, muitos deles com vidas muito breves. Essa breve duração é muitas vezes nociva, já que uma serie de projetos ficam inacabados e acabamos não conseguindo avançar em lutas mais a longo prazo como a que estamos querendo construir. Por outro lado, é importante que os grupos estejam se renovando constantemente e que não se mantenham com base em um suposto passado glorioso de lutas, mas sem atuação atual.
Por fim, falamos sobre como construímos nossas relações com outros grupos que não se distanciam mais ou menos do nosso projeto político. A interação com partidos políticos, por exemplo, foi debatida com bastante ênfase: eventualmente, em lutas especificas, podem ser aliados estratégicos? Ou estamos de fato construindo um projeto político oposto, já que nos queremos destruir o Estado e eles querem tomá-lo? Acima de tudo, como nos relacionarmos com eles sem sermos modificados por uma estrutura e um tipo de pratica que é oposto às nossas? Essa discussão se assemelha um pouco com a já feita sobre a autonomia em relação ao Estado e se aplica também a outras organizações e instituições, como ongs por exemplo.
Sobre Organização
A discussão sobre organização surgiu de algumas encruzilhadas que encontramos em nossa caminhada. Discutimos inúmeras vezes se deveríamos seguir em nossas lutas somente a partir das pautas com que trabalhamos ou se deveríamos fortalecer os grupos organizados que se vinculam a diferentes pautas desde uma luta específica. Ao mesmo tempo que nos juntarmos só a partir de pautas nos torna manipuláveis pelos setores articulados que tem estratégias mais definidas, muitos grupos perdem sua capacidade de aglutinar pessoas e sobrevivem como zumbis de afinidades ou formas burocratizadas.
Assim, temos acordo sobre a necessidade das organizações autonomistas para desenvolver as lutas. Porém o elemento de vida desta organização não pode ser só suas trajetórias, conquistas e pessoas: deve-se adicionar, fundamentalmente, as idéias que são características do movimento, em forma de planos de ação e estratégias. Assim, a organização deve ser um tanto formal, possibilitando que quem tenha acordo com as idéias da luta se aproxime dela, ainda que não tenha – ou não queira ter – grandes relações pessoais e intimas com os demais companheiros/as.
Entramos então em uma situação complicada, pois uma das características marcantes das organizações e discursos do movimento autônomo é a negação das formas de organização clássicas vinculadas aos movimentos sociais tradicionais. Ao mesmo tempo o movimento é herdeiro direto das discussões sobre organização que marcaram as lutas existentes na história. É um paradoxo curioso: ao mesmo tempo que negamos estas organizações tradicionais, muito do que sabemos sobre organização partiu delas.
A dimensão lúdica tão importante para nós, por exemplo, existe na história de formas semelhantes e muito diferentes das nossas. Nossa retórica é bastante lúdica, mas seria isso uma novidade? Outro ponto, bastante polêmico é sobre a organização partidária. O que devemos negar e o que devemos adaptar da forma de luta partidária? A dimensão da ação de vanguarda do movimento é uma negação a priori? Qualquer especialização e distinção de habilidades é equivocada? Esta discussão não acabou…
Sobre o Anticapitalismo
Para que serve o movimento autônomo? Ele luta por reformas sociais ou por uma revolução geral? Até onde vão as lutas? Como lutar contra o estado e capital sem legitimá-los? A questão debatida é corrente e influi diretamente em nossa forma de ação.
O Movimento Autônomo do DF surgiu como uma forma de lutar pela destruição do sistema social em que vivemos; igualmente este movimento inaugura práticas que apontam para o tipo de sociedades que almejamos construir. Esta dúvida entre a dedicação à destruição do sistema social vigente e a construção de outro tipo de sociedade esteve bastante presente em nossas discussões. Ter o fim desta sociedade como horizonte é um passo importante para sabermos que caminho trilhar sem nos perdermos. Definirmos também o que queremos ao futuro é fundamental para sabermos aonde queremos chegar.
Nomeamos este sistema como Capitalismo e, portanto, somos Anticapitalistas. Temos três entendimentos presentes deste anticapitalismo que convivem em nosso meio: um primeiro do anticapitalismo vinculado às correntes operárias, crítico da sociedade baseada na propriedade privada, livre concorrência de mercado e no trabalho assalariado. Além disso temos influencia das críticas ao capitalismo de estado dos estados soviéticos, onde sob bandeira supostamente socialista, gestores dominaram – em seu proveito – a propriedade pública por meio do estado. Por fim também nos influencia bastante a constituição do anticapitalismo desde a convergência de diversas lutas como as ambientais, étnicas, feministas, operárias.
Fundamentalmente, este anticapitalismo está ancorado nas vidas que desenvolvemos e vemos no mundo ao nosso redor. Estas resistências manifestam-se de diferentes formas e devemos nos organizar a partir delas, rumo a uma perspectiva geral. Não nos vinculamos nem buscamos insistir numa chata, desagradável e vaidosa oposição entre movimentos classistas e identitários. Trabalhamos com as diversas vertentes dentro do campo revolucionário que tem essas dimensões que elencamos, buscando uma articulação. Esta perspectiva deve balancear nossas práticas e ações do grupo quando vamos decidir por onde agir e qual nossa estratégia.